26 Outubro 2016
Por que o enorme número de votos em “ninguém”, nas eleições de 2016, pode ser ponto de partida para refletir sobre a necessidade de nova esquerda .
O artigo é de Djalma Nery, graduado em Ciências Sociais pela UNESP, pós-graduando do departamento de Ecologia Aplicada da USP, publicado por Outras Palavras, 24-10-2016.
Eis o artigo.
Passadas três semanas desde o primeiro turno das eleições, e tendo lido diversas análises e interessantes (ao final do texto, segue um compilado de minhas principais referências e dicas de leitura), redigi este breve texto analítico do cenário político a partir dos resultados das urnas e buscando fazer uma síntese de minhas percepções e das argumentações trazidas nos textos que li. Não é meu objetivo fazer uma análise longa e repleta de dados. Para aprofundamentos, sugiro a leitura dos textos indicados ao final. Quero aqui, apenas trazer algumas ideias centrais para reflexão.
A primeira e dolorosa impressão que o 2 de outubro causou foi a vitória da direita e do conservadorismo como reflexo do processo de alienação e analfabetismo político brasileiro, fomentado por diversos atores políticos relevantes, interessados na manutenção do status quo. Outra leitura imediata foi a de que toda a insatisfação, a exemplo do que aconteceu em junho de 2013, não havia sido canalizada à esquerda, mas sim para os pólos mais “despolitizados” (e despolitizantes) em disputa e, portanto, à direita, ainda que grande parte da população não leve em conta tal antagonismo no espectro político.
Analisando os números absolutos da votação a nível nacional, é fácil concluir que a esquerda não cresceu, nem ocupou o vácuo deixado pela queda do PT, como pretendiam alguns. Apesar de ter elegido mais quatro vereadores no Brasil, e mantido o número de duas prefeituras, o PSOL perdeu 300 mil votos nas eleições majoritárias (para as prefeituras) e 800 mil nas proporcionais (vereadoras e vereadores). O mesmo ocorreu com o PCdoB, que aumentou significativamente o número de representantes nas Câmaras Municipais, porém perdeu quase 100 mil votos. Já o PSTU, que também obteve 100 mil votos a menos, não elegeu nenhum representante a nenhum cargo nos municípios do Brasil.
Para onde foram então os 10 milhões de votos perdidos pelo PT, e as 400 prefeituras que este partido perdeu com relação as eleições de 2012? O PSDB levou sozinho 4 milhões destes votos, e muitos outros foram partilhados por inúmeros partidos menores, alinhados aos setores conservadores, reacionários e fundamentalistas.
A reação mais óbvia e imediata é: a direita cresceu muito, ganhando os imaginários e mentes de parcela da população para seu discurso de retrocessos, “austeridade”, ajustes e privatizações. Porém não podemos ser levianos, e não aplicar o mesmo método de observar a votação absoluta de todas essas forças. E o diagnóstico objetivo é que o maior vencedor (em termos absolutos) da derrocada do PT e, portanto, ganhador da maior parte de seus espólios, é a desilusão: o número de votos inválidos (brancos, nulos e abstenções) bate um novo recorde, atingindo índices históricos
“A soma dos votos brancos, nulos e abstenções ganhou as eleições em nove capitais e a oscilação que eleva para 17,58% o percentual de abstenções (em 2012 havia sido algo entorno de 12%), mascara que em algumas cidades este número ultrapassou a marca dos 30%.” (Mauro Iasi, no Blog da Boitempo).
“Cerca de 17% do eleitorado total do país sequer compareceu as urnas. Contudo, a soma de votos nulos, brancos e abstenções chegou a ser majoritária nas principais cidades do Brasil, um dado incrível. Tal soma ganhou em São Paulo, Rio de Janeiro, Belo Horizonte, Porto Alegre, Cuiabá, Curitiba, Porto Velho, Campo Grande, Belém, para citar as capitais.” (análise MES – Movimento da Esquerda Socialista – tendência interna do PSOL)
Figura 1: Evolução do percentual de abstenções em SP
1) A primeira é questionar certo discurso alarmista que tem ganhado força na esquerda, afirmando que a direita dominou o país. Não. O que cresceu vertiginosamente foi a desesperança e o desinteresse no engajamento político, dos quais quem se beneficia mais diretamente, de fato, é a direita, pois apresenta um discurso mais palatável, vazio e apolítico do que organizações compromissadas com a promoção da emancipação e do pensamento crítico.
2) A segunda coisa que deve estar clara, é que, apesar da vitória da desilusão expressar-se claramente nas urnas, isso não se reflete no campo institucional, pois não há espaço pra isso na burocracia estatal. Nas eleições, o que conta são os votos válidos. Se 99% da população não optar por ninguém, e 1% eleger candidato X, esse candidato tomará posse normalmente sem qualquer forma de diferenciação para o Estado. Isso nos faz concluir que, no fim, voto nulo de protesto não muda em absolutamente nada o andar da carruagem, e não tem qualquer efeito concreto, sendo, quando muito, um paliativo moral para o indivíduo que não quer se ver envolvido com tudo aquilo. Essa é uma crítica que endereço aos setores autonomistas que, em alguns casos, promovem e engajam-se em campanhas pelo voto nulo ou pela abstenção eleitoral – na prática, nivela-se o discurso por baixo, dizendo que nada muda, independente de quem está lá. Isso favorece que os mesmos permaneçam, subsidiados por uma parcela menos crítica da população, o que, por sua vez, aumenta ainda mais a desilusão, criando um círculo vicioso. É preciso romper uma certa prática idealizada e moralista da política. Política é algo que não é preciso acreditar pra participar, ela não depende da nossa crença, e, muitas vezes, prescinde dela – o Estado existirá por um tempo, gostemos ou não, e determinará nossas vidas. Fechar os olhos ou omitir-se não irá alterar em absolutamente nada essa condição, a não ser que organizemos levantes concretos que paralisem a produção e reprodução da vida e do sistema, colocando empecilhos objetivos em seu funcionamento. Ações como greves gerais, ocupações e greves de setores produtivos estratégicos.
3) Outra análise que podemos inferir daí, é que a tática dos setores conservadores de massacre à imagem do Partido dos Trabalhadores esteve atrelada a um projeto, parcialmente bem sucedido, de deslegitimar e abalar toda a esquerda, pois a população em geral não faz grandes diferenciações nos matizes políticos de todo o espectro das organizações de esquerda, classificando-as, no limite, como “azuis” ou “vermelhas”. Dessa forma, precisamos nos atentar a possíveis vanguardismos expressos em tentativas desesperadas e, por vezes artificiais, de desvincular a qualquer custo as imagens de partidos consequentes (essencialmente PSOL, PCB, PSTU e PCO) de partidos de centro-esquerda como PT e seus aliados conjunturais do PCdoB ou PDT. Essas diferenciações devem se dar na política e na prática e, artificializá-las pode, ocasionalmente, surtir o efeito reverso. Felizmente, o PSOL foi o partido que fez a melhor defesa institucional e narrativa contra ao golpe que depôs a presidenta Dilma, percebendo se tratar de uma manobra que teria reflexos na criminalização de toda esquerda. Além do mais, é estranho quando vemos uma imagem do PSTU (Fora Todos!) tornando-se capa de uma edição da revista Veja. O que acontece quando fazemos coro com os setores mais reacionários para combater um inimigo em comum? Enfim, não podemos servir de massa de manobra e, tampouco, achar que discursos sectários e, por vezes, até mesmo moralistas, tenham qualquer efeito concreto de atração das massas, pois não tem.
4) Por fim, acredito que o principal papel da esquerda consequente neste cenário onde o desencanto mostra-se vitorioso é, primeiro, promover um “reencantamento da política” e da participação popular. Política se faz com pessoas, e trazer as pessoas voluntariamente para dentro dela é o primeiro passo para poder superar a desilusão rumo à um outro mundo possível.
Depois, é preciso promover uma unidade no campo da esquerda que seja a síntese das últimas décadas de história, onde oficialmente o PT perde seu protagonismo e, para não se restringir e definhar (ou mesmo ter seu registro cassado), terá que se reinventar profundamente, balizando-se pela ética, pelos critérios, e pela redução de seu grau de pragmatismo em nome de construções basilares programáticas.
É preciso falar com as pessoas onde elas estão. A militância consequente tem a chance de ouvir as pessoas de fato, ao invés de abordá-las com um projeto pronto de nação. Isso inclui dialogar com divergências, discordâncias e contradições, e abrir mão de posturas intransigentes.
Existe uma avenida aberta e manifesta na crescente insatisfação popular com a participação na política. Não é diretamente com a direita que disputamos, mas com a desilusão – essa sim instrumentalizada por setores reacionários e conservadores. Então vamos ao bom combate!
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Entre a desilusão e o possível reencantamento - Instituto Humanitas Unisinos - IHU